A Interposição

Castelo Kilenstern, Elisburg - 1303
  Vitrais coloridos lançavam padrões intrincados de luz pela sala, contrastando com as paredes de pedra maciça que carregavam séculos de história. Grandes tapeçarias decoravam essas paredes, cada uma recontando antigas batalhas e vitórias. No centro, uma imensa mesa de carvalho escuro dominava o ambiente, rodeada por cadeiras esculpidas com detalhes intrincados. Candelabros de ferro forjado pendiam do teto alto, suas chamas tremeluzentes adicionando um ar de solenidade e mistério à sala.   Sentado à cabeceira da mesa estava um homem de meia-idade, com postura firme e olhos penetrantes. Seu olhar era de alguém acostumado a calcular riscos e benefícios, sempre buscando por uma oportunidade. Ele guiava a reunião com um tom grave e determinado.   — Com o ressurgimento do Reino de Konigar, o caminho natural é a centralização dos três Conselhos da Tríade sob uma estrutura única localizada em Elisburg . Isso fortalecerá nossa posição e evitará disputas.  Rolf, isso significaria que você ficaria abaixo de S. Como podemos garantir que isso não nos enfraquecerá?   Rolf negou com a cabeça, sua voz firme — Não, Sihtric. S foi escolhido para assumir o Conselho de Noria após o desaparecimento de Tulan.   Mauregato levantou-se e, com um tom de preocupação, questionou — A influência de S não será limitada pela sua residência. Como podemos ter certeza de que ele não está manipulando a situação?   — O movimento de S para o Porto de Noria é estratégico. O Conselho de Noria está vulnerável, todos os Conselheiros de lá são inexperientes e será mais fácil para nós consolidarmos o poder em Elisburg. S pode ser influente, mas ele estará distraído com a proximidade da Catedral das Sombras.  Fellis Arpe.   Rolf olhou para o rapaz loiro, que até então parecia não estar prestando atenção na discussão — Brynjolf, que bom que decidiu participar... Arpe é a mão direita de S, e ela está indo com ele para o Porto das Sombras também. Essa é uma oportunidade única! Conseguem perceber isso?   — Minha mãe e Krankheim estão em Makdorf. Esse tipo de decisão deveria ser aprovada por todos os Conselheiros...   — Bom você ter citado Karliah. Nós já conversamos e ela assumirá a operação em Makdorf dentro desta nova estrutura, e Krankheim será o braço direito dela lá.   Brynjolf ficou vermelho, visivelmente consternado — Eu prefiro ter minha mãe por perto. Deixe Krankheim como responsável de Makdorf!   — Não fui eu quem proibiu Karliah de vir a Elisburg, certo?   — Eu converso com a Marly ... apenas me dê algum tempo.   — Não temos tempo agora. Oportunidades são para os que chegam primeiro. Se a situação mudar no futuro, realocamos ela para Elisburg. Eu sei muito bem o valor de ter Karliah por perto. Mas, quando esse momento chegar, preferiria que um de vocês assumisse Makdorf.   Mauregato senta-se — Rolf, você sabe que estou montando minha companhia de mercenários e, por sinal, sou muito grato por toda a ajuda que tem dado até o momento. Mas eu e a Viúva precisaremos ir para Rizzard ainda este mês.   — Eu os acompanharei para Rizzard e de lá seguirei meu caminho para Silitia. Preciso encontrar alguém especial para mim — Sihtric disse com a voz baixa, quase um sussurro.   — E de lá você deverá seguir para as Colinas de Odesa, Sihtric. Essa é sua responsabilidade — Brynjolf falou rispidamente, encarando Sihtric.   Sihtric o encarou em resposta — Seguirei o que nós combinamos. Apenas não esqueça que essa responsabilidade não é minha. Essa responsabilidade é nossa! — ele apontou para Brynjolf e Mauregato.   — Colinas de Odesa? Vocês não podem estar sérios. Isso é parte do plano secreto de vocês com o Conclave? Os Selos foram destruídos, os magos perderam e nós quase não sobrevivemos a isso tudo... o mundo era ruim antes, mas e agora? — Rolf olhou para cada um deles, mas os três desviaram o olhar dele.   — Ainda há trabalho a ser feito. O Conclave...   — O Conclave! — Rolf interrompeu Brynjolf — Sada Nazari e os colegas dela nos deram informações que, como posso por isso... informações que, no mínimo, eram incompletas. Sua mãe foi parar literalmente no Inferno!   — Ela foi para o Abismo, na verdade.   Todos se viraram para ver quem era a mulher que interrompeu a reunião deles.   — Sada, esta é uma reunião privada do Conselho — Rolf tentou usar um tom calmo, mas não conseguiu esconder a irritação com a Favorecida de Hekat. Ignorando as palavras de Rolf, Sada continuou seu caminho em direção à mesa e sentou-se.   — Rolf, vamos reiniciar novamente esta conversa... ninguém sabia como de fato os Selos funcionavam, pois a magia que os criaram era uma adaptação humana de antigos rituais élficos.   — Não preciso ouvir essa ladainha novamente. O mundo não se restabeleceu disso ainda e, pior, parece que a situação está degradando. Durante todo o evento, você me garantiu que poderíamos controlar isso em nosso favor.   — Se fosse seguido o plano inicial! O último selo deveria ser o Selo da Magia!   — Sada — Mauregato a interrompeu — Eu também queria que tivesse sido diferente, mas não tínhamos essa opção.   — Assim como vocês não têm a opção de não estarem todos juntos em um mesmo lugar!? Vocês sabem dos riscos, vocês simplesmente acham que podem fazer o que quiserem!  Alcaraz está em Noria, então não há risco — Brynjolf disse com a voz baixa enquanto admirava uma das tapeçarias da sala.   — O combinado é ficarem separados!   — Como assim? — Rolf se levantou da cadeira — Então há um motivo para eu nunca conseguir me reunir com vocês cinco? O que vocês estão escondendo?   — Depois eu que não consigo guardar segredos. Mandem a Sada para as Colinas...   Mauregato e Brynjolf olharam para Sihtric, o olhar deles claramente o repreendendo pelo comentário.   — Lembro bem que você não queria ser envolvido nesta história dos Selos no início — Com uma mão, Sada arrumou o cabelo enquanto fixava o olhar em Rolf — Como você dizia: “Algo sem valor precisa ser divulgado para parecer importante. Algo importante precisa ser esquecido para parecer sem valor” — Ela disse, imitando o tom pragmático de Rolf — Chegou sua vez de esquecer que ouviu algo.   Rolf não escondeu a sua insatisfação com a situação e sentou-se ruidosamente.   Ele respirou fundo e continuou — Vamos prosseguir com os assuntos importantes e aproveitar sua presença aqui, Sada — Rolf alcançou alguns papéis sobre a mesa — Tenho aqui a lista atualizada de pretendentes para a Rainha Lianne, conforme discutimos anteriormente.   — Rolf... exatamente sobre este assunto que vim te procurar — Sada disse com hesitação.   Rolf reclinou-se na cadeira em antecipação — Sada... você é a pessoa mais próxima de Lianne. Se tem alguém que conseguirá colocar um pouco de razão naquela cabeça teimosa...   — Esse não é o problema. Ela é até bastante flexível e entende o seu papel.   — Então o que houve?   — É um assunto particular.   — Sada, ela é a Rainha! Os assuntos particulares dela são de interesse do Estado e ela me elegeu como o Mestre do Gabinete Real, então diga qual é o assunto.   — Então peço para os outros saírem.   — Eles ficam. Eles são meus Conselheiros e até eu substituir eles, visto que cada um precisa estar em um canto diferente do mundo devido a algum esoterismo do Conclave... — Rolf balançou a cabeça ainda refletindo sobre a discussão anterior — exponha o problema particular da Rainha para que possamos propor soluções e resolver isso logo.   — Lianne está grávida.   A surpresa deixou todos boquiabertos.   Sihtric e Mauregato comentaram algo um para o outro e riram. Rolf, com os cotovelos sobre a mesa, apoiou a cabeça com as mãos. Brynjolf levantou-se e começou a andar de um lado para o outro da sala, murmurando algo ininteligível.   — Por Nox e seus planos sombrios... vamos pensar agora. Isso com certeza limita muito nossas opções, mas ainda temos um caminho! — Rolf sorriu — o filho mais novo do Rei de Nalis está em Elisburg. Vamos correr com os preparativos e amarrar este casamento para os próximos dias e ele nem desconfiará!   — Rolf, ela está com mais de quatro meses.   — Filha de uma súcubo! Como isso é possível? Ela nem saiu do castelo durante este período. Há quatro meses, ela estava isolada na torre devido às crises. Apenas você tinha acesso a ela e Brynjolf era o responsável direto pela segurança... — Rolf parou e observou Brynjolf caminhando freneticamente — desgraçado! Você destruiu mais de um ano de trabalho com seu ato irresponsável!   Ignorando os gritos de Rolf, Brynjolf correu na direção da porta. Ele atravessou os corredores e subiu as escadas do castelo, e em um instante ele se viu no último degrau, à sua frente a antessala dos aposentos da Rainha.   A antessala era um espaço grandioso, porém íntimo, projetado para impressionar e ao mesmo tempo proporcionar segurança. As paredes eram revestidas com painéis de madeira escura, esculpidos com detalhes intrincados que retratavam cenas épicas da história de Elisburg. Tapetes luxuosos cobriam o chão de pedra fria. No centro da sala, havia um par de poltronas de veludo carmesim, elegantemente dispostas ao redor de uma pequena mesa de mármore, sobre a qual repousava um vaso de porcelana contendo flores frescas. As janelas altas eram adornadas com pesadas cortinas de brocado, que podiam ser puxadas para bloquear qualquer visão externa.   Dois homens da Guarda Real estavam posicionados ao lado da porta que levava aos aposentos reais. Vestiam armaduras brilhantes ornadas com o símbolo da família real, mas Brynjolf olhou para as laterais e encontrou o que buscava: dois homens ocultos nas cortinas. Brynjolf acenou suavemente com a cabeça para um deles, que respondeu da mesma maneira.   Ao se aproximar da porta, um dos guardas se moveu à frente dele, impedindo seu caminho.   — Senhor Brynjolf, a Rainha está ocupada e demandou não ser incomodada.   — Certo... eu interpelo — Brynjolf disse sem confiança, como se estivesse tentando lembrar algo.   O guarda olhou para ele com desconfiança.   — Não é isso, certo? Inter... não estou com tempo para isso agora — Ele olhou na direção das cortinas e viu que ele já estava com a adaga na mão — Pelo menos agora sei que vocês estão seguindo o protocolo — ele olhou para o teto por algum tempo — Ah! Eu me interponho!   O guarda voltou alguns passos na direção da porta, bateu nela quatro vezes em um ritmo específico e abriu a porta. — Majestade, o Senhor Brynjolf se interpôs.   Brynjolf sorriu satisfeito para os guardas e acenou positivamente para os outros homens escondidos. Ao se aproximar da porta, um aroma delicado e encantador o tomou de surpresa.   O ar era doce com a fragrância das rosas recém-colhidas, cujas pétalas estavam espalhadas em pequenos cestos de prata e arranjos florais luxuosos, infundindo o ambiente com um perfume suave. Misturava-se ao perfume das rosas uma nota de lavanda fresca, que exalava uma sensação de tranquilidade e serenidade. Em contraste, havia um leve toque amadeirado de cedro e sândalo, provenientes das caixas de joias e dos móveis esculpidos, conferindo ao espaço uma profundidade terrosa e reconfortante. O aroma era completado por um sutil traço de especiarias exóticas, como canela e cravo. Este buquê de fragrâncias criava um ambiente acolhedor e refinado, digno da realeza, onde cada respiração evocava a elegância e a majestade de sua ocupante.   Seguindo em direção ao cômodo onde ficava a cama, ele viu Marly, ali em pé, vestida com um longo e suntuoso robe feito dos mais nobres tecidos. Mas Brynjolf ficou paralisado ao perceber que ela estava acompanhada de uma outra mulher.   Esta desconhecida lembrava muito Marly. Seus cabelos eram longos e negros, emoldurando seu rosto perfeitamente alvo. Entretanto, o olhar que ela deu à intromissão de Brynjolf o deixou ainda mais desorientado naquela situação. O manto cinza dela era ornamentado com um emaranhado de símbolos, runas élficas, claramente uma obra-prima da raça ancestral.   Ela se aproximou de Marly, segurou suas mãos e carinhosamente beijou sua testa.   — Outro dia nós continuamos — ela sussurrou para a jovem rainha.   Marly levantou as mãos da misteriosa visitante até seus lábios e as beijou.   A visitante virou-se em direção a uma das passagens ocultas do quarto e saiu, deixando a Rainha e Brynjolf a sós.   — Quem era essa mulher?   Marly encarou Brynjolf, sua expressão pouco amistosa.   — O Senhor Brynjolf se interpôs em meus aposentos para investigar com quem eu estou falando!? — A raiva em sua voz deixou Brynjolf sem reação. — Vamos! Diga qual emergência de Estado o trouxe aqui.   — Marly...   — Marly? Quantas vezes eu devo lembrar que meu nome é Lianne Kilengar? Pelo visto, também esqueceu que sou a Rainha, pois até o momento não estou entendendo o motivo de ter utilizado sua prerrogativa como chefe da segurança para invadir meu quarto.   Brynjolf respirou fundo e ergueu as mãos ao ar, como rendido pela rainha — O assunto é sério, não estou aqui para espreitar na sua vida e nos seus assuntos — ele olhou para Marly e agora percebeu que ela mudou, sua silhueta estava curvilínea, seus seios fartos e a barriga começando a projetar seu delicado robe à frente.   Percebendo o olhar dele, ela jogou a parte traseira de suas vestes para frente, numa tentativa de disfarçar seu corpo. Ela se moveu na direção da cama.   — Estou cansada e amanhã tenho uma agenda a cumprir. Se deseja falar comigo, faça como todos os outros e peça uma audiência ao Rolf.   — Está vendo! Você está fugindo de mim, Mar... Lianne. Desde aquela noite na torre, eu preciso conversar com você.   — Já disse que não irei falar sobre isso.   — Você está grávida!   Ela sentou-se na cama, seu rosto na direção da janela, evitando o olhar de Brynjolf.   — Eu te amo, Lianne! Eu quero ser o pai desta criança. Eu preciso disso, eu preciso de você! — Ele se ajoelhou de frente para ela. — Eu rodei o mundo e durante todas as noites eu sonhava com você, e cada lugar extraordinário que vi, cada pessoa que conheci, não importa o quão incrível fosse, eu sempre pensava no que você diria se estivesse ali comigo...   Lágrimas corriam pelo rosto da jovem rainha — Eu estou com medo... estou apavorada com tudo isso. Eu era uma menina até pouco tempo atrás e agora eu tenho que fingir ser uma rainha, tenho que passar meus dias falando com pessoas que não gosto, enquanto eu queria apenas voltar para a masmorra do Conselho de Makdorf e humilhar você com minha agilidade e superioridade — Ela tentou rir, mas se engasgou com as lágrimas.   — Você sabe que sempre deixei você ganhar...   — É mesmo? Essa ainda é sua melhor desculpa?   O sorriso dela parecia ainda mais cativante iluminado pelas lágrimas que escorriam pelo seu delicado rosto avermelhado. Com uma das mãos ele tentou secar as lágrimas dela, mas quando seus olhares se cruzaram, o impulso daquele momento foi forte demais, ele a beijou.


Cover image: by Henrique Albert