Entre as Sombras de Nox

Porto de Noria, 1314
  O som dos passos ecoava pelas ruas estreitas e escuras. Os longos cabelos vermelhos da jovem sacerdotisa sobressaíam na escuridão, atraindo todos os olhares. Seu manto púrpura de tecidos esvoaçantes adornava suas curvas, tornando impossível ignorar sua presença. Ao seu lado, um homem de estatura e porte avantajados era um claro lembrete de que, por mais bela que uma chama seja, tocá-la sempre terá seu preço.   O casal avançava com passos decididos, desconsiderando os olhares furtivos. O ar noturno estava carregado com um misto de salitre e decadência, e figuras sombrias surgiam e desapareciam nas sombras. À frente deles, pessoas aglomeradas na entrada da taverna riam, gritavam e bebiam. Alguns pareciam comemorar, enquanto outros apenas observavam. A maioria deles usava vestes escuras, não eram amistosos e carregavam espadas, adagas e outras armas visíveis. Isso em nada reduziu o passo do casal, que seguia sem contornos em direção ao interior da taverna.   Ao se aproximarem, os sons da multidão foram abafados e substituídos por sussurros enquanto as pessoas se acotovelavam e apontavam para o casal. A princípio, era possível entender claramente o coro de vozes dizendo “Viúva” com um tom de admiração, comentando algo sobre ela e seu novo Rito. Não demorou para reconhecerem seu acompanhante e o nome Teodor começar a se espalhar, porém, o tom era bem diferente, esse nome era dito com asco e olhares de reprovação. Ninguém permaneceu à frente do casal, que atravessou confortavelmente o salão aberto da taverna até chegar à maciça porta de madeira negra que se abriu para eles.   O contraste entre o exterior e o interior da taverna era chocante. A porta dava acesso a um ambiente de opulência sombria. A luz suave dos candelabros de ferro pendia do teto, lançando sombras dançantes pelas paredes de pedra adornadas por murais. As mesas, de madeira perfeitamente negra, refletiam um brilho fosco, enquanto cadeiras esculpidas com detalhes intrincados aguardavam os visitantes. O ar estava impregnado com o aroma de perfumes exóticos e um leve toque de tabaco, criando uma sensação de riqueza e mistério.   Cada canto da taverna exalava um luxo sinistro, com o silêncio quebrado apenas pelo som suave de conversas em tons baixos. Era um verdadeiro refúgio para aqueles que operavam nas sombras de Noria. Sentado em um canto da taverna, um homem loiro acenava para eles se aproximarem.  Brynjolf! Quanto tempo não nos vemos!   — É verdade, Teodor — disse Brynjolf levantando-se para cumprimentá-lo.   Teodor ignorou a mão estendida de Brynjolf e o abraçou vigorosamente, os sons dos tapas nas costas de Brynjolf reverberando pelo salão reservado da Mesa Negra.   — Vamos pedir um bom jantar! Você está precisando de um pouco de carne nestas costelas, homem! — Ele gesticulou para as belas atendentes da taverna. — Tragam o que tiverem de mais saboroso, meninas. Um bom leitão e o que mais tiverem aí! — Ele colocou uma mão no ombro de Brynjolf e falou em tom de sussurro, porém ainda alto o suficiente para ser ouvido por qualquer um presente. — Pelo visto, a Rainha está fazendo um bom uso de você, meu rapaz, ein!?   Brynjolf ignorou Teodor e foi em direção à sacerdotisa que estava o esperando. Ele começou a se ajoelhar perante ela, como era o costume, mas ela rapidamente o segurou. — Você não. Você, entre todos, nunca. És meu irmão, venha e me abrace — ela envolveu Brynjolf em seus braços e ele correspondeu em um longo abraço. — Como senti sua falta.  Elisburg estará sempre à sua espera — ele a encarou. — Quando teremos um templo do Crepúsculo por lá?   — Os recursos estão limitados... A Catedral ainda está longe de ser concluída e quero que ela seja perfeita, como Nossa Dama.   — Umbra Nostra!   Teodor se aproximou com taças e uma garrafa de vinho.   — Aqui, vamos ver o que o vinho servido na melhor taverna do Conselho pode nos oferecer! — Ele serviu a todos e guiou a sacerdotisa para a mesa, onde a auxiliou com a cadeira. — Pois bem, como está Lianne? Nossos serviços têm sido do agrado de Vossa Majestade?   — Precisamos conversar sobre isso, Teodor. Ainda estamos exauridos da guerra e estamos acumulando dívidas.   — Sim! Digo o mesmo... Não tem sido fácil para nós também. Principalmente quando temos que pagar os melhores guardas da realeza sem receber nada em compensação!   — Podemos combinar de reduzir o valor pela metade, assim eu consigo aprovar o pagamento total.   — O que estamos cobrando é exatamente o que estamos pagando aos guardas. Reduzir não faz sentido!   — Então... vamos reduzir os guardas pela metade, assim eu consigo aprovar e vocês conseguem pagar os guardas.   — Ah! Muito bem! — Teodor levantou-se e bateu palmas sonoramente, perturbando o ambiente tranquilo e silencioso do salão. Quando ele finalmente se cansou, voltou para sua cadeira. — Perfeito, Brynjolf. Vejo que está finalmente seguindo os ensinamentos deixados por Rolf. Gostaria de conceder essa vitória para você, pois eu gosto de você! — Ele disse isso batendo no peito. — De coração, sabe? Afinal, tu és um Adarbrent! Seu sangue grita Rizzard. Já te contei que meu avô conhecia Tristan, teu avô?   — Sim, Teodor. Mas como eu dizia, a questão é financeira, e após a guerra em Legransk a situação piorou — Brynjolf parou sua explicação ao perceber que alguém se aproximava silenciosamente da mesa. Ele virou-se e viu um homem com capuz negro já próximo.   — Seja bem-vindo, Alcaraz — disse a Viúva antes mesmo de olhar na direção.   Alcaraz lançou uma gargalhada sarcástica.   — Para alguém que sempre criticou o modus operandi das sacerdotisas de Noria, você está bem à vontade manipulando e enganando.   — Estou aqui apenas para ajudá-los.   Brynjolf balançou a cabeça negativamente e levantou-se para sair do lugar.   — Pelo visto, nem os anos na corte real foram suficientes para te amadurecer, Brynjolf — Alcaraz disse enquanto se sentava à mesa.   — Seus atos nunca serão perdoados.   — Pelo menos eu fui homem o suficiente de fazer o que tinha que ser feito em nome de Nossa Senhora. Não recorri a terceiros por medo.   — Se eu quisesse te matar, eu teria ido naquela estalagem.   Viúva sinalizou para Brynjolf voltar para sua cadeira. — Pelo menos estamos conversando... Alcaraz, você sabe que não foi ele que contratou Gui.   — Não faz diferença. Karliah e ele representam a mesma coisa. Ela assumiu as cordas do boneco Brynjolf, depois do Rolf...   — Não mencione Rolf! — Brynjolf disse apontando o dedo para Alcaraz ameaçadoramente.   — Rolf morreu pelos atos dele. Eu fui apenas a mão que teve o privilégio de desferir a justiça divina.   Brynjolf encarou Alcaraz e em sua mão começou a surgir uma lâmina de sombras.   — Chega! — Viúva ficou de pé. — Isso acaba aqui hoje. Brynjolf, aceite sua sorte, para o bem ou para o mal, este é o caminho que Nox reservou para você — ela virou-se para Alcaraz. — Que Ela reservou para nós!   — Não se preocupe, Cleonice. Não estou aqui para me vingar do seu marido — Alcaraz sorriu para Teodor.   — Seria uma péssima escolha de lugar — Teodor disse enquanto servia vinho para Alcaraz. — Afinal, você ainda é um Conselheiro de Nox e o Pacto das Sombras ainda está vigente em Noria. Bom, como eu já disse, não aceitamos a recompensa pelo seu irmão. Nós respeitamos os acordos, não tentamos sair deles quando nos beneficia — ele lançou um olhar de reprovação para Brynjolf. — Nós já sabemos quem nos traiu e iremos encontrá-lo.   — Não perca seu tempo, Zago. Não encontrará nem as cinzas deste desgraçado — Alcaraz disse brindando com Teodor.   — Ótimo! Estamos quites então, Alcaraz. — Teodor foi até a Viúva e a beijou. — Annetta, vou deixar você com seus companheiros. Estarei no quarto te aguardando com este ótimo vinho.   — Pode ir, Teo, mas eu terei uma noite longa pela frente — Viúva sinalizou para algumas atendentes e apontou para Teodor. — Mas não ficará sozinho. Teodor beijou a mão da Viúva e se despediu dos demais. Ele colocou o braço sobre os ombros de uma das atendentes e seguiu a outra subindo a escada para os quartos da estalagem acima.   — E Mauregato, como ele está, Cleonice? — disse Mortimer enquanto observava Teodor sair. — E Isael Rolen?   — Alcaraz, o que pensa em fazer aqui em Noria?   — Não desvie o assunto, como está sua outra família? Aquela que abandonou e que, graças a isso, condenou meu irmão à morte?   A expressão impassível da sacerdotisa se alterou, seu olhar se perdendo na taça de vinho em suas mãos. Um peso repentino surgiu sobre seus ombros.   — Alcaraz, do que a acusa? Como a Viúva saberia o que aconteceria? Por Nox!   Alcaraz permaneceu encarando a Viúva. — Ela sabia exatamente o que ocorreria. Mas é um princípio básico de sobrevivência, certo? Primeiro os meus, depois o resto.   A Viúva recuperou sua compostura e também fixou seus olhos em Alcaraz. — Responda minha pergunta, o que irá fazer em Noria?   — Tenho contas a acertar.   Brynjolf, ainda em pé, riu debochadamente. — Você sabe de onde vieram as ordens pela cabeça de Affonso. O que pretende fazer? Invadir a Catedral das Sombras? Vá! Pelo menos não terei que perder meu tempo desta vez para evitar que te matem.   Alcaraz considerou essa última frase de Brynjolf por um tempo. — Então confirma minha suspeita, Brynjolf. Foi você que pagou o Mestre da Adaga para não aceitar a recompensa pela minha cabeça.   — Não. Naquele tempo, eu queria que ele tivesse seguido com o contrato. Deve sua vida a outra...   Alcaraz percebeu que Brynjolf brevemente desviou o olhar para a Viúva. Ele analisou a Viúva. — Foi assim que me achou naquele dia... agora entendo aquela conversa sobre troca de favores.   — Eu não imaginava que alguém faria algo contra sua família.   — Não imaginava? Você recebeu um recado direto da Skalen!   A Viúva balançou a cabeça negativamente e voltou para sua cadeira, começando a contar os dedos lentamente com uma das mãos.   Brynjolf se aproximou de Alcaraz e falou em voz baixa. — Então foi a Skalen que mandou matar seu irmão?   A Viúva fechou a mão e bateu no braço da cadeira, recomeçando sua contagem.   — Tenho certeza de que foi uma das quatro... uma das três. Provavelmente a Skalen ou a mãe dela!   Abrupta e sonoramente, a Viúva levantou-se da cadeira, estendeu a mão na direção dos dois e começou a mostrar um dedo por vez, lentamente.   Alcaraz ameaçou falar algo, mas a sacerdotisa o reprimiu com o dedo da outra mão.   Quando terminou a contagem, ela falou com raiva — O que há na cabeça de vocês dois? Vocês não sabem que não deveriam falar o nome abandonado delas e muito menos se referir ao passado delas?   Brynjolf colocou a mão no rosto, demonstrando preocupação.   — Não me venha com estas crendices agora, Cleonice. Tenho preocupações mais relevantes. Já citei o nome dela inúmeras vezes após ela se tornar a Dama Crescente e estou aqui.   — Não é assim que funciona... existe um motivo para o nome Crescente. Ela está assumindo a posição, gradualmente se tornando uma Face da Lua, mas isso começou há anos. Hoje, ela está... diferente. Principalmente, não se refiram à Dama Minguante e a quem ela possa ter relação antes de se tornar quem ela é. Nessa fase, ela está garantindo que nada e ninguém se lembre dela, e ela fará questão de eliminar qualquer fonte de rumores sobre o passado dela. Agora, sentem-se e vamos aguardar a chegada de quem vocês invocaram.   — Como assim? Ela de fato ouviu quando falamos o nome dela?   — Estamos a poucos metros da Catedral das Sombras. Eu diria que ela deve ter literalmente ouvido vocês gritarem o nome dela. Por sorte, nesta fase, elas ainda são mais tolerantes a este tipo de desrespeito, Brynjolf.   Eles completaram suas taças de vinho e aguardaram em silêncio. Os sons do lado de fora, apesar de abafados pela enorme porta de madeira negra, ainda podiam ser ouvidos do lado de dentro. Entretanto, à medida que o tempo passava, um silêncio estranho e opressor começou a tomar conta da taverna, como se a própria noite estivesse segurando a respiração. Então, um murmúrio sussurrado percorreu a multidão lá fora, como um vento frio que varre as folhas caídas. As vozes se calaram uma a uma, até que restou apenas um silêncio absoluto. A atmosfera estava pesada com uma expectativa sombria, como se todos soubessem que algo grande e inevitável estava prestes a acontecer.   A porta da taverna rangeu levemente quando foi aberta. A figura que entrou trouxe consigo uma aura de poder que fez todos os presentes se encolherem involuntariamente. O murmúrio recomeçou, mas agora era um sussurro reverente e temeroso.   Ela entrou com passos lentos e deliberados, cada movimento carregado de autoridade. Seu suntuoso manto perfeitamente vermelho brilhava como uma chama na escuridão e sua presença fazia com que as sombras ao redor parecessem se inclinar em deferência.   Os presentes se levantaram respeitosamente, suas cabeças inclinadas em sinal de respeito. A Dama Crescente parou no centro da sala, seus olhos varrendo o ambiente com uma intensidade que fazia o ar parecer eletrizado.   — Estou aqui, Ramon Alcaraz — o sorriso no rosto dela transparecia sua natureza contorcida e sua personalidade imprevisível — mas tenho que informar, que aquela que chamou está morta, assim como teu irmão.   Alcaraz se manteve em silêncio, observando aquela que conhecia como Skalen. Essa era a primeira vez que a via desde seu encontro há mais de uma década no Selo da Terra em Mourak, quando ele ainda era Ramon Alcaraz. Apesar de sua aparência em nada ter mudado, era visível que algo estava diferente em sua postura, em sua voz. A atitude travessa e completamente inconsequente que ele lembrava de Skalen havia desaparecido. Aquela mulher à sua frente tinha uma aura sombria que atraía a todos ao seu redor, uma promessa irrecusável do derradeiro destino, assim como o fogo engana os insetos a se lançarem dentro dele.   Com um gesto, ela fez todos os presentes saírem do salão às pressas. Em um movimento delicado, ela estendeu a mão em direção a Brynjolf, que rapidamente se ajoelhou à sua frente. A Dama Crescente gesticulou ritualisticamente sobre a cabeça dele. Ela parou com a mão ainda estendida no ar, o rosto esboçando tremenda satisfação a ponto de deixar um sutil gemido escapar de sua boca.   — Como é incrível a energia de Nossa Senhora que exala de ti, querido devoto — Ela tocou nos cabelos de Brynjolf e deixou a mão descer lentamente, contornando o rosto dele.   Brynjolf se arrepiou com a frieza do toque dela, como se ela drenasse sua força vital. Ela então ofereceu a mão em direção a Alcaraz, que por um instante relutou em ir em sua direção, mas acabou cedendo e se ajoelhou ao lado de Brynjolf. Ela repetiu o mesmo gesto.   — Ramon, a mera referência ao passado da Dama Minguante seria uma condenação à morte para um homem. Porém, és um escolhido de Nox e o favorito da Nova Dama. E, afinal, tenho admiração por ti! — disse ela, deixando escapar uma risada seca tingida de ironia.   — Não irei aceitar a morte de meu irmão em vão.   — Levanta-te e olha-me nos olhos, Ramon.   Compelido por uma força além de sua própria vontade, ele se ergueu e, ao fazê-lo, percebeu o quão alta era a sacerdotisa.   — Por qual motivo está criando estas narrativas, Ramon? Feche os olhos. Sinta a Nossa Senhora. Venha.   Ainda compelido, Alcaraz foi em direção à Dama Crescente e beijou seus lábios gélidos. Ele deu dois passos para trás, atordoado, e caiu de joelhos no chão.   — Então, Escolhido de Nox, o que me diz?   Alcaraz colocou-se novamente sobre seus pés e virou-se para a Viúva. — Você sabia e mesmo assim, decidiu arriscar?   — Alcaraz! Não se deixe levar pelas Damas, a situação era diferente do que os fatos que viu!   Alcaraz ignorou o apelo da Viúva e começou a andar em direção à porta, abaixando o capuz sobre o rosto. Ele se retirou da Mesa Negra.   Brynjolf fez um gesto respeitoso às sacerdotisas. — Acredito que a conversa agora será reservada ao alto clero. Que a sombra de Nox as envolva. Umbra Nostra — Ele subiu as escadas para os quartos.   E lá, sozinhas, as sacerdotisas ficaram uma de frente para a outra. A tensão do momento parecia escalar a cada segundo, deixando a sensação de que a qualquer instante uma delas explodiria contra a outra.   — Minha magnífica ruivinha, venha aqui que quero te abraçar.   — Também estava sentindo sua falta — disse a Viúva enquanto abraçava a Dama. — Nossa, como você está alta! Seja lá o que está fazendo, estou ficando com inveja!   — Vamos para a Catedral, quero conversar mais à vontade.   A Viúva aceitou o convite e a Dama Crescente conduziu o caminho. Quando as portas do salão reservado da Mesa Negra foram abertas, toda a multidão ali fora se ajoelhou. Os mais próximos abaixaram a cabeça em reverência, enquanto os mais distantes arriscaram espiar a dupla de sacerdotisas caminhando imponentemente rumo à Catedral das Sombras. Essa cena se repetiu ao longo do caminho, até chegarem aos jardins sinistros que cercavam a gigantesca construção. A Dama deixou escapar um sorriso nefasto, piscando para a Viúva.   — Dama Crescente, o que é isso?! Toda essa admiração e temor que a população tem de você... é inebriante.   — Aninha, agora estamos a sós na Catedral e, perante Nox, somos iguais. Pode me chamar de Skalen. Afinal — ela começou a enrolar uma mecha do cabelo ruivo da Viúva entre seus dedos — já somos íntimas.   A ruiva observou o olhar lânguido de Skalen e mordeu seu próprio lábio.   Skalen sorriu, agora com sinceridade. — Venha, vamos para minha ala da Catedral — Ela segurou a mão da sacerdotisa do Crepúsculo e a guiou subindo a longa e sinuosa escadaria.   Enquanto atravessavam os corredores sombrios e salas interconectadas, um verdadeiro labirinto, as sombras pareciam segui-las. Quadros e estátuas adornavam as paredes, cada uma mais perturbadora que a anterior. As pinturas retratavam cenas de pesadelo, figuras contorcidas em agonia eterna, seus olhos parecendo seguir os passantes com uma curiosidade sinistra. As estátuas, tão realistas que quase pareciam vivas, observavam com expressões de angústia e raiva, como se a qualquer momento fossem sair de seus pedestais e se juntar ao mundo dos vivos.   O ar era denso e frio, carregado com uma presença opressiva que pressionava as duas mulheres enquanto navegavam pelo labirinto da catedral. Cada passo ecoava com um ritmo ameaçador, e um silêncio esmagador dominava o espaço, interrompido apenas pelos sons distantes, quase imperceptíveis, de cânticos e o ocasional gotejar de água invisível. O aroma de velas queimando, misturado com a umidade das pedras, criava uma atmosfera de decadência e mistério.   Ao passarem por uma série de portas esculpidas com runas, as duas mulheres chegaram a uma grande sala circular. No centro, um altar negro de mármore reluzente se erguia, cercado por velas cujas chamas tremeluzentes lançavam sombras dançantes pelas paredes.   Ali, à frente do altar, uma jovem de cabelos loiros rezava ajoelhada. Ela se levantou e olhou com curiosidade para a Viúva, mas, como se percebesse sua indiscrição, curvou-se em deferência às suas superiores.   A Viúva se aproximou. — Que bela noviça! Que lindo cabelo loiro... — Ela enfatizou a cor do cabelo enquanto observava Skalen. — Quando foi a última vez que vi uma bela noviça loira em Noria? Não me lembro...   Skalen despejou uma de suas risadas irônicas enquanto se aproximava da jovem. — Deve ser porque você nunca viu uma. Inclusive, esta jovem aqui veio com você... de Rizzard.   — É mesmo? Minha memória já não é mais a mesma. Você acreditaria que eu quase não lembro de nada de quase um ano inteiro da minha vida? O último especialista com quem conversei disse que eu devo evitar Selos Mágicos para isso não piorar, acredita nisso? — A Viúva imitou a risada irônica de Skalen. — Mas me ajude com minha péssima memória, como era o nome desta adorável noviça do Crepúsculo?  Magnolia, da poderosa linhagem Fellin de Rizzard, lembra?   — Claro que lembro. Mas minha memória está me pregando peças, pois jurava que Magnolia havia morrido um pouco antes de eu sair de Rizzard.   — Que absurdo! Olhe para ela, isso parece alguém morto? Ou pior, isso aqui parece uma capela de Vaepra? Inclusive, se ela tivesse morrido, você jamais teria deixado de comunicar os Fellin, correto?   — Correto, eu teria enviado uma respeitosa carta para eles e faria uma visita assim que retornasse a Rizzard. Porém, essa carta nunca foi escrita e por isso nunca chegou até eles, é isso, Dama Crescente?   — Fico feliz que sua memória está voltando, por um instante fiquei preocupada.   A jovem observava o diálogo entre as sacerdotisas com olhar de preocupação e abraçou Skalen, como se despedisse de alguém muito querido.   A Viúva observou a cena e não escondeu sua surpresa. — Por Nox! Uma noviça abraçando a sagrada Dama Crescente! Pelo visto novos costumes surgiram.   Skalen beijou a testa da jovem e correspondeu carinhosamente ao abraço. — Vá, Magnolia, aguarde sua superior lá embaixo para retornar a Rizzard.   Uma lágrima correu pelo rosto da noviça, mas ela seguiu as ordens da Dama sem questionar e foi em direção a escada.   — Essa é peça que faltava para eu entender o motivo de ter me ajudado todos os estes anos. Eu acreditava que finalmente estava desvendando seus mistérios e você conseguiu ocultar uma criança por todos estes anos na Catedral, nossa! E como isso é possível? Quantos anos ela tem? Foi antes de ser transformada em Dama...   Em resposta, Skalen apenas solta seu manto vermelho. A vestimenta desliza suavemente, revelando as curvas de seu corpo firme, coberto apenas por um tecido transparente que delineava seus contornos com uma sensualidade sombria. A pele pálida contrastava com a escuridão do ambiente, criando um espetáculo hipnótico de luz e sombra. Seus olhos, intensos e cheios de um desejo selvagem, fixaram-se nos da Viúva, transmitindo uma mistura de comando e sedução.   — Aninha — sussurrou Skalen, aproximando-se lentamente. — Você quer entender os motivos da minha ajuda? Achei que já havia deixado claro.   Ela segurou a mão da Viúva e a guiou até o centro da sala, onde a luz das velas do altar revelavam ainda mais seu corpo sob o tecido transparente. Com um gesto delicado, Skalen removeu o manto da Viúva, revelando um corpo escultural coberto por um fino tecido de seda que parecia flutuar ao redor dela. A Viúva sentiu um arrepio percorrer sua espinha enquanto Skalen a olhava de cima a baixo, admirando cada detalhe.   Com um movimento rápido, Skalen virou a Viúva de costas e a pressionou contra o altar de mármore negro. A ruiva ofegou, sentindo a dureza fria do mármore contra sua pele quente. Skalen manteve suas mãos firmes nos ombros da Viúva, inclinando-se para sussurrar em seu ouvido.   — Hoje, você será minha em corpo e alma — disse ela, a voz carregada de promessas sombrias.   Com uma mão ela puxa os cabelos vermelhos da sacerdotisa expondo seu pescoço pálido e delicado. — Sinto a energia de Nox pulsando em ti... — Skalen inspira profundamente deliciando-se do aroma quente e provocativo que exalava da pele da Viúva. — As demais sacerdotisas não se comparam a ti, Aninha.   Sangue começa a tingir os olhos de Skalen de vermelho, suas delicadas mãos cerram e transformam-se em garras. Ela abre a boca revelando seus caninos, agora longos e pontudos, e se prepara para abocanhar o desejado pescoço.   Mas a mordida nunca veio, a Viúva olha e vê que Skalen ficou paralisada, seus olhos arregalados de confusão e boca entreaberta, congelada no ato, prestes a morder. O silêncio no ar era palpável, pesado, enquanto uma nova presença se fazia sentir na sala. Lentamente, a Viúva virou-se, seus olhos encontrando a figura imponente.   No limiar da sala, uma mulher irradiando uma autoridade avassaladora fazia o ar vibrar com uma energia opressiva. Vestida com um manto negro que esvoaçava suavemente, como se fosse uma extensão das próprias sombras que preenchiam o ambiente. Os olhos dela, dois poços de escuridão insondável, pareciam absorver toda a luz ao redor, deixando apenas uma sensação de vazio e temor.   A Inconcebível aproxima-se com passos imperceptíveis, seu manto negro flutuando sobre o salão. Sua presença ressoando na alma dos presentes. Skalen rapidamente recobrou a compostura, endireitando-se e afastando-se da Viúva com um movimento rápido e reverente. A Inconcebível parou diante das duas mulheres, seu olhar varrendo a sala antes de fixar-se em Skalen. — O primeiro sangue sempre deve ser meu.   Skalen abaixou a cabeça em deferência, suas mãos tremendo ligeiramente.   — Vossa Umbra, estava apenas tentando... — começou ela, mas a Inconcebível a interrompeu com um gesto.   — Silêncio. — A voz da Inconcebível cortou o ar como uma lâmina. — A Poente Sacerdotisa é uma escolhida de Nox. Qualquer ritual deve ser conduzido com a devida reverência e autorização.   A Viúva, ainda atordoada, buscava entender as palavras da Inconcebível. Uma deusa viva, assim emanava presença esmagadora dela e isso tornava difícil focar.   A Inconcebível então voltou seu olhar para a Viúva, e pela primeira vez, a ruiva sentiu a total extensão do poder que emanava da figura diante dela. Era como olhar para o próprio abismo consumindo tudo ao seu redor.   — Vossa Umbra, estava ansiosa em encontrá-la, em servi-la. — Ela se ajoelha aos pés de sua superior.   A Inconcebível oferece a mão para a Viúva beijá-la e a ordena a se levantar.   A Viúva oferece o pescoço a sua superior, mas a Suprema Sacerdotisa de Nox apenas nega com a cabeça. — Quero aproveitar cada instante com você. — Ela puxa o tecido fino que cobria a Viúva, expondo sua pele ao toque faminto. Ela beija o pescoço que lhe fora oferecido e com um gemido ela sussurra para Skalen, que está ali ansiosamente observando, aguardando — Minha Crescente, não te culpo por ceder a essa tentação. Venha, minha jovem Dama, hoje teremos um banquete a três.   A Viúva sorri, inebriada pelo poder, pelo desejo fervoroso de Nox.


Cover image: by Henrique Albert