Senhor da Colina

by Henrique Albert
Cidade fortificada de Devon     Devon, 1319   -Sihtric , senhor... É necessário que entenda que por mais que tenhamos dobrado os proventos, Devon ainda está acumulando dívidas e...   -Giovanni , é justamente para isso que você foi contratado – Sihtric responde sem desviar sua atenção do movimento no pátio abaixo, enquanto se apoia no parapeito da janela – como você disse, estamos com quase duas mil vidas dentro das muralhas, sem contar as fazendas e pequenas vilas aos pés da colina. Precisamos expandir.   -Expandir?! Desculpe-me senhor, isso é um absurdo.   -Um absurdo é deixar essas pessoas sem abrigo no caso de um ataque.   -Ataque? Voltamos ao tema... senhor, já estamos aqui há mais de quinze anos e...   -E eu – ele vai em direção a Giovanni, o encarando de maneira intimidadora - vou repetir, eu, com minhas próprias mãos, espada e escudo, cuidei para que o pior não ocorresse aqui. Mas eu não estarei aqui para sempre, e, que a Dama da Noite não permita, que não sejamos atacados por uma legião de criaturas do coração das colinas.   Giovanni permanece em sua posição com o mesmo semblante impassivo – isso não muda os fatos. Iremos precisar de mais dinheiro. Teremos que novamente recorrer aos seus patronos, e, como você costuma dizer, é para isso que estou aqui. Agora, para quem iremos recorrer desta vez? O Rei de Konigar, a Poente Sacerdotisa , a Suma Sacerdotisa, os Correspondentes, a Liga dos Dez de Rizzard... alguma companhia de mercenários de algum companheiro de aventuras de outrora... ah não! Esqueci já estão todos cobrando pelos empréstimos!   -Veja bem, Barbo. É isso mesmo que faremos, e se não conseguirmos com eles, vamos atrás das Dinastias ou Casas, ou sei lá como vocês chamam suas famílias ricas de Rizzard. É para isso que tenho um Barbo aqui, certo? Como é que dizem mesmo... um Barbo barganha até uma aliança?   Giovanni balança a cabeça em negação – negociamos alianças, barganhamos...   Antes de completar, ele é interrompido por um dos guardas abrindo a porta – Senhor Sihtric, desculpe-me, mas a sacerdotisa Aurea Satin aguarda.   -Diga para ela aguardar – ele dispensa o guarda, e aguarda ele fechar a porta - Continue Giovanni.   -Deixe-me retornar ao ponto central, concordo que devemos recorrer aos contatos para mais recursos, mas precisamos investir nas estradas.   -Não. Já disse que não. Do que vão adiantar estradas quando formos atacados?   Giovanni coloca a mão no rosto e respira fundo – a estrada antiga de Haysin ainda é utilizada pela metade das caravanas. Eles a preferem, pois ganham praticamente um dia de viagem.   -Mas ela está abandonada há décadas. Sem falar que a Floresta Imemorial já está a tragando em muitas partes. O próprio tempo irá...   -Não podemos esperar! Temos que pagar parte dos empréstimos para conseguirmos novos – Giovanni anda de um lado ao outro da sala – Veja, não estaríamos aqui discutindo isso se tivesse reaberto as minas ao sudeste.   -Estou aguardando os elfos.   Giovanni não consegue manter a compostura neste momento – aguardando os elfos?! Senhor Sihtric! Nós, humanos, apenas conquistamos o mundo dos elfos porque nós somos rápidos, se aguardássemos os elfos...   Novamente Giovanni é interrompido com o guarda abrindo a porta, mas antes mesmo dele falar, as vozes exaltadas de duas mulheres discutindo na antessala se sobrepõem.   -Há séculos... não, milênios! Devo ressaltar, nossos rituais...   -Vamos falar de tradições então? – a outra mulher em vestes púrpuras interrompe - Até pouco tempo atrás não existiam os tais aspectos divinos que vocês estão pregando como verdade –ela diz com sarcástico.   -Do que está falando? – a outra jovem, essa vestindo branco com belos adornos dourados, fala utilizando sua melhor oratória – antes da Grande Revelação existiam mais de trinta aspectos, isso há mais de um milênio...   -Menina, você tem quantos anos, quinze? Antes de você nascer, minha Poente...   -Quinze?! Do que está falando? Eu tenho... ah! Não vou deixar você usar seus truques para desviar...   Batendo suas mãos ruidosamente, Sihtric se coloca entre as jovens sacerdotisas – que tarde maravilhosa! – sua voz alta silencia ambas – ver vocês duas juntas é como ser abençoado pelo dia e pela noite ao mesmo tempo.   Aproveitando o momento, Giovanni se aproxima da sacerdotisa em vestes adornadas em dourado – digna senhorita Aurea Satin – ele a saúda com dois dedos apontados para o céu – espero que sua estimada família esteja bem.   -Senhor Giovanni Barbo, Alos ilumina e protege nossas famílias, agradeço sua preocupação, mas fique tranquilo que elas estão bem.   Ele se ajoelha e beija a mão da jovem e levanta-se, agora dirigindo-se a outra sacerdotisa – digna senhorita Magnolia Fellin, desejo o mesmo para sua estimada família.   Magnólia, em seu robe púrpura, em nada modesto, é um verdadeiro contraste com Aurea, apesar de não aparentar ser mais velha, sua pose e sensualidade claramente a destacam, pelo menos os guardas no local parecem obstinados em acompanhar cada passo dela se aproximando de Giovanni. Ela oferece a mão a ele, que desconsertado a beija, mas sem se ajoelhar.   Com um sorriso no canto da boca, Magnólia passa delicadamente sua mão no rosto barbudo dele – muito bem, querido. Que Nox tenha piedade sobre os homens.   -Barbo, irei com elas, amanhã continuamos nossa conversa.   -Claro senhor, os deuses não esperam pelos mortais. Irei antecipar com os Correspondentes o que discutimos.   Sihtric faz um gesto para as sacerdotisas guiarem o caminho, mas Magnólia ligeiramente se acomoda ao seu lado e coloca sua mão em seu braço. Percebendo a intenção da jovem, ele oferece o braço a ela.   Aurea ignora o movimento da outra sacerdotisa, guia o caminho um passo à frente deles.   Pouco a frente, um rapaz correndo nos corredores quase esbarra em Aurea, que o segura.   -Pai! Siren roubou a adaga que me deu! – ele diz com raiva, quase gritando.   Sihtric com uma mão pega por trás da túnica – vamos andando, pois tenho pressa Beldar .   O rapaz vai aos tropeços tentando olhar para o pai enquanto explica – Siren pegou minha adaga, a que você me deu, e disse que não irá devolver!   -Então veio aqui para dizer que não só perdeu o presente, como é incapaz de resolver sozinho os seus problemas e precisa recorrer aos outros? Estou muito decepcionado Beldar.   -É... eu, mas eu – o rapaz gagueja.   -Sem mas, resolva seu assunto como um homem.   -Mas ela é mais velha e mais forte...   -Se acha que resolver um assunto como um homem é utilizar a força contra sua própria irmã...   -Não pai! Não mesmo... Eu já sei como resolver... sim! Eu sei como – sem nem olhar para trás, ele se solta da mão do pai e sai correndo.   -Não acho que deveria fazer isso – Aurea diz balançando a cabeça – ele tomará a decisão errada.   -Aurea, ele precisa aprender. Errando ou acertando, ele aprenderá uma lição.   -Mas sem ter alguém por perto para orientá-lo, ele poderá aprender a resolver os problemas da maneira errada ou, pior ainda, cometer um erro irreparável.   -Desta vez eu tenho que concordar com a raio dourado – comenta Magnólia.   -Ah! Era o que me faltava, duas meninas me ensinando a criar meus filhos... pelo visto os cultos de Alos e Nox resolveram seus problemas e se uniram para me criticar.   Elas sorriem uma para outra.   Seguindo pelos corredores, eles descem alguns lances de escadas e chegam ao final do caminho deles. Após passarem por uma porta de pedra maciça, eles são recebidos por três elfos em uma câmara repleta de símbolos élficos ou arcanos, seja o que for, uma verdadeira obra de arte intricada e incompreensível. O aroma no local é uma mistura de incensos, ervas e cheiro de terra.   -Irval Que’cel? Ah sim, é você mesmo... há mais dez anos que não o vejo – Sihtric se aproxima para abraçar o elfo mais velho.   Irval apenas levanta a mão e faz um gesto élfico, que Sihtric acredita ser um cumprimento e ele imita, visto o desconforto de seu hospede.   -Essas são as escolhidas? – Irval questiona se aproximando delas – tão jovens...   -Sim, somos nós e...   -Magnólia, escolhida de Nox – Magnólia corta Aurea.   Aurea segura uma resposta, suspira e apenas encara Magnólia, demonstrando indignação sobre as contantes interrupções.   -Deem-me suas mãos – o elfo cuidadosamente posiciona a mão de Aurea contra a mão de Magnólia e, dedo por dedo, alinha um gesto, interpondo os dedos delas e em sequência faz o mesmo com a outra mão.   Irval guia as sacerdotisas ao centro da sala, onde elas se ajoelham uma de frente para a outra com as mãos entrelaçadas. Entre elas, ele coloca uma pequena medalha prateada, mas que reflete a luz com um tom azulado. Essa medalha tem duas correntes longas e delicadas, feitas do mesmo material, cada uma presa a um lado.   O reflexo azulado começa a ficar mais intenso.   -Sihtric, isso conclui nosso acordo – Diz Irval com o olhar fixado nas jovens no centro.   -Eu não consigo me mexer – Magnólia fala entre os dentes.   -Ótimo, pois precisará ficar nesta posição até a chave se partir em duas – Irval sinaliza para os outros elfos.   Cada elfo pega uma corrente da medalha, passando elas sobre a cabeça das jovens e ao encostar no pescoço delas, a corrente começa a lentamente a se retrair, puxando o rosto delas até quase encostar a ponta do nariz uma da outra.   -Por Alos! Quanto tempo isso levará? – Aurea pergunta entre os dentes, sem conseguir gesticular os lábios.   -Será rápido, não se preocupe, menos de um dia com certeza.   -O que?! - Magnólia geme demonstrando alguma dor, mas continua – se soubesse que teríamos este momento tão íntimo, Raio dourado... eu teria tentado deixar você mais agradável ao meu olhar.   -Shh... relaxem, ou isso irá se tornar mais doloroso que o necessário – Irval adverte elas com uma tentativa de sorriso tranquilizador, mas sem sucesso, pois agora o olhar delas começa a transparecer desespero.   Os elfos começam a pegar os seus pertences pelo cômodo.   -Antes que saiam, preciso saber sobre as minas – pergunta Sihtric.   Sei que para vocês é complicado entender nossa cultura ou diferenciar um elfo do outro, mas devo ressaltar que este assunto não é comigo.   -Eu sei, Irval, mas já se passaram quase quinze anos desde que começamos a discutir e Jersali prometeu que este tema seria tratado com prioridade.   -Se nossa Brethil assim disse, assim será.   -Eu estou aguardando por quinze anos!   -Assim como aguardou pelo selo, que é um assunto mais crítico e nós arriscamos muito ao fazer isso dentro deste curto espaço de tempo. Isso não é certo, e foi justamente este tipo de pressa que gerou todo este problema. Minha espécie, minha história, minha cultura... tudo praticamente dizimado por humanos e sua pressa... sua ganância em ter tudo – Irval começa a sair pelo túnel lateral, mas para e olha para Sihtric – meu trabalho aqui terminou, os anões devem obliterar essa passagem, como combinamos.   -Amanhã eles irão cuidar disso – Sihtric percebe que esqueceu do principal – ah! Vocês entregaram a chave aqui como combinado, mas em nenhum momento nos foi dito como as sacerdotisas podem abrir o selo caso seja necessário.   -Como foi combinado, nós deixamos a chave com os humanos, mas o segredo de como utilizá-la será nosso. Apenas lembre-se que as portadoras nunca poderão sair desta colina – Irval e os outros entram no túnel, sem mais explicações.   -Ouviu raio dourado, nós seremos como irmãs até nosso último suspiro – Magnólia realça a ironia em suas palavras com um suspiro forçado entre os dentes.   -Sihtric! Não me deixei aqui sozinha com ela!   Sihtric já estava andando na direção da escada – Aurea, trate bem sua irmã da noite, agora serão como o dia e a noite de Devon, então precisam se conhecer melhor. Além disso, lembrei do meu filho Beldar e aposto que a irmã dele está novamente fazendo venenos, por isso pegou a adaga dele, preciso ir salvar o garoto!


Cover image: by Henrique Albert