Uma tarde rara

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by Henrique Albert
Área rural e a cidade de Lantir     Lantir, 1304   Uma tarde rara, por certo. A brisa ainda fria carregava a lembrança do inverno em contraponto ao calor do sol que já prenunciava o verão que estava por vir. Os campos de Lantir já ostentavam todas as suas cores, uma demonstração nada tímida de seu esplendor. Contudo, esta paisagem em nada mais servia do que como moldura, um mero adorno, à beleza de Edelin. Não seria uma surpresa se os pássaros neste momento apenas estivessem ali como um coral para exaltar seus encantos desta bela jovem aos seus admiradores.   Edelin sorri em resposta ao olhar arrebatado de Mortimer, completamente absorvido em observá-la, ao ponto de que, acanhada, começa a servir vinho a seu pai, sem reparar que sua taça já havia sido cheia além do limite, derramando o excesso direto nas roupas dele.   -Sua desastrada! Ah! Veja o que fez... como pode ser tão imprestável?!   Por certo uma tarde rara, perfeita aos minúsculos detalhes, com apenas uma exceção, monsieur Regnault Moisson.   -Regis, deixe-me o ajudar, querido – rapidamente sua esposa, madame Gisa, corre para auxiliá-lo – não vamos abalar este maravilhoso...   -Sua filha como sempre! Por Unos! – Ele engole o que o vinho que restou, ou seja, a taça cheia. Após se recompor, ele alcança o que restou do carneiro sobre a mesa e, comendo, começa a andar – Venha Mortimer, não irei deixar que estraguem essa tarde... vejo que trouxe seu arco como havia combinado.   -Devidamente – Mortimer responde, mas seu olhar ainda travado a Edelin, ele acena para ela com um sorriso apaziguador e a reassegura que está tudo bem. Ele Levanta-se e pega o objeto cuidadosamente embrulhado em panos que estava ao seu lado.   Um dos servos chega correndo com duas aljavas repletas de flexas e dois arcos longos. Não eram instrumentos de caça e sim armas de guerra, de boa qualidade. Sem cerimônia, Regnault puxa ruidosamente as armas das mãos do homem e entrega um arco e uma aljava a Mortimer – leve estes aqui. Hoje verá o que é um equipamento de qualidade –com um gesto desdenhoso, ele dispensa o serviçal.   -Vão e divirtam-se. Quando voltarem estaremos aguardando próximas a lareira – diz Gisa com seu sorriso amável, mas Regnault, se ouviu, não se manifestou.   Edelin, ainda desconcertada, apenas acena para Mortimer, que a responde com um aceno carinhoso.   -Como eu estava falando antes de ser interrompido – Regnault recomeça a conversa enquanto guia seu convidado para a parte mais distante do magnifico jardim que cerca sua casa na fazenda – estas terras estão na minha família por gerações. Minha bisavó era uma Ole'Lantir – seu peito estufa ao pronunciar o sobrenome, tamanha a ênfase.   -Ole'Lantir? Impressionante. Então faz parte da nobreza?   -Podemos dizer que sim – tamanho o orgulho em suas palavras, que, se fosse possível ver as palavras, elas estariam escorrendo por sua boca.   Ao final da caminhada, eles chagam a um campo aberto, longo, de gramado verdejante, cuidadosamente preparado. Três alvos para prática de tiro com arco estavam armados ali, cada um mais distante que o outro, sendo o último a uma distância que apenas arqueiros experientes saberiam como acertá-lo.   -E finalmente chegamos. Como eu havia prometido, e sou homem de palavra, o melhor campo de tiro que já viu – sem perder tempo e com a habilidade de um veterano, ele encrava algumas flechas ao chão, se posiciona e atira contra o segundo alvo, a meia distância, acertando-o no círculo mais próximo ao círculo central – ah! O vento e o vinho, uma combinação que embaraça até os melhores arqueiros.   -Um bom tiro ainda sim.   -Apenas estou aquecendo. Pegue este arco e mostre o que sabe fazer, mas não atire no alvo mais próximo – ele o subestima – este é para as crianças apenas.   Sem pressa, Mortimer apoia seu embrulho contra a árvore, sem nenhuma habilidade encrava algumas flechas no chão, mas a maior parte delas falham em fincar e caem sobre o chão. Ele prepara o arco que lhe foi emprestado, mas suas vestes negras e longas o atrapalham e ele puxa as mangas para trás, revelando um pouco de seus braceletes.   -Como em uma tarde tão agradável, um se veste com roupas de inverno? Já estava ao ponto de oferecer as roupas de um dos meus garotos, só não o fiz, pois seria deselegante – o monsieur diz balançando a cabeça em desaprovação.   Ignorando o comentário, Mortimer atira contra o segundo alvo, atingindo-o em seu círculo mais distante do centro, por pouco não errando o alvo por completo.   -Ah! De fato! – diz Regnault quase que triunfante - Quando Edelin contou que quando o conheceu no bosque havia sido porque uma de suas flechas passaram zumbindo por uma de suas orelhas, eu havia estranhado a história, mas posso constatar que de fato é tão desajeitado quanto ela. Unos concedeu um milagre naquele dia. Impressionante ela estar viva e ainda exibindo duas orelhas!   -Foi uma falha... não sabia que tinha mais alguém naquele momento por lá, achei que era um cervo. Mas, posso garantir que não sou desajeitado com o arco, apenas não gosto de atirar sem objetivo.   Este comentário chama a atenção de Regnault - Agora sim! Estamos começando a nos entender, rapaz. O que me diz de uma moeda de ouro para cada rodada para aquele que a flecha ficar mais próxima do centro?   -Não sei... parece inapropriado para o monsieur, acredito que isso irá desmotivá-lo. Vamos fazer por dez moedas então.   -O que? - Regnault é pego de surpresa – Não sabia que poderia dispor destes meios. Saiba que não pegarei leve só porque a tola da minha filha se deixou levar por sua lábia, rapaz.   -Não espero nada menos.   Mortimer retorna para o seu embrulho apoiado na árvore e retira seu arco.   Regnault rapidamente percebe – Um arco élfico? Estou começando a entender sua natureza, rapaz. Vejo que é um jogador e estava escondendo seu trunfo este tempo todo – Ele se aproxima para ver o arco - Saiba que eu mesmo já tive um destes – ele se apoia na árvore para contar sua história - Há muitos anos, antes mesmo de conhecer minha Gisa, alguns elfos da Floresta Riaard estavam matando o rebanho de alguns fazendeiros localizados mais próximos da floresta. Você sabe como esta raça é... um bando de seres prepotentes que se acham acima de tudo e de todos. Mas nós demos uma lição neles, uma boa lição.   Mortimer olha para o arco atentamente, como se quem estivesse contando a história para ele, fosse o arco e não Regnault.   -Logo no amanhecer do dia, nós saímos de nossos esconderijos. Foram dias nos organizando e nos instalando nas casas próximas da floresta para que aqueles orelhudos não nos percebessem chegando – Ele olha para o seu ouvinte contemplando o arco e pega no ombro dele para que o olhe e continua – sabe por que escolhemos atacar pela manhã?   Mortimer apenas o olha, mas não esboça nenhuma intenção de responder.   -Porque estes efeminados, magricelos, orelhudos conseguem ver bem no escuro, mas durante o início da manhã eles estão trocando o turno deles. E foi assim que os pegamos de surpresa... claro, com uma boa ajuda de óleo e tochas para queimar aquela floresta deles – ele para e olha para os lados como se fosse contar um segredo que não poderia ser ouvido por outros, mesmo eles estando sozinhos ali – mas tenho que admitir garoto, mesmo naquela fumaça, mesmo suadas e sujas, aquelas elfas cheiravam bem... – seus olhos se fecham, como se ele estivesse revivendo ali mesmo as memórias daquele momento – e te digo, depois que pegamos gosto por certas iguarias, nós sempre voltamos para um pouco mais, nem que seja pagando caro!   Novamente os olhos de Mortimer se voltam para o arco – certo, eu penso o mesmo.   Regnault volta para sua posição e atira, desta vez contra o alvo mais longínquo, acertando no segundo círculo mais próximo do círculo central – Ah, veja só! Vamos lá, faça melhor agora com este arco das meninas do bosque.   Sem responder as provocações, ele atira. Sua flecha acertando no círculo mais próximo do círculo central, praticamente entre um e outro.   -O que?! Eu sabia! – Regnault responde ultrajado ao tiro quase perfeito de seu competidor - Este é mais um daqueles arcos enfeitiçados por aquelas criaturas do mato!   -Como eu disse, eu estava apenas aquecendo. O arco apenas me garante o conforto...   -Conforto? – ele gesticula inapropriadamente para o Mortimer – Minhas acompanhantes na Casa de Mariette que trazem conforto, isso aí simplesmente um engodo para retirar meu dinheiro usando feitiçaria élfica! Vamos inverter então, você me dá este arco e vemos se é conforto o que de fato está acontecendo aqui!   -Não encoste... – Mortimer para, como se uma terceira pessoa o interrompesse, e olhando para o arco acena a cabeça positivamente – está bem, vamos sim. Tome pegue o arco – ele oferece a arma sem resistência e aceita o outro arco - Agora, vamos tornar isso ainda mais interessante?   -Mais interessante? Eu já estou vendo que você não terá dinheiro para cuidar de si próprio quando acabar minhas flechas.   -Faremos assim: o melhor arqueiro em três tiros é o vencedor, meu caro. Se for o vencedor, ganhará isso aqui – ele produz de dentro suas vestes uma algibeira, a joga para Regnault.   Ele agarra a algibeira e com desconfiança examina seu conteúdo. Descrente com o que vê, ele espalha em sua mão algumas pedras de dentro da bolsa e analisa com assombro a qualidade das gemas – isso é um tesouro inestimável! – mas rapidamente ele começa a desconfiar do que estaria em jogo ali e interpela – se pensa que irei colocar minha fazenda nesta aposta, estará apenas se fazendo de tolo perante mim! Não nasci ontem para cair nestes truques de trapaceiros estrangeiros!   -Não estou atrás de sua fazenda ou seus bens materiais.   -Então o que quer?   -Quero aquilo que considera mais valioso, mais do que tudo.   -Ah! Por um instante esqueci o que está interessado – Regnault suspira e balança a cabeça, abandonando o medo de perder sua preciosa fazenda – Eu já fui jovem também, e fiz coisas do estupidas apenas para aplacar meus desejos... jovens, sempre tolos – Ele pega uma flecha e a puxa contra a corda do arco, mirando alto – então temos um acordo.   Sua flecha voa alto e certeira. Ela acerta com pujança o círculo próximo ao círculo central, próxima a flecha que Mortimer há pouco havia colocado lá.   -Ah! Eu disse! Espero que aceite sua derrota com dignidade, pois sairá daqui carregando apenas as roupas do corpo.   Com tranquilidade, Mortimer ajusta o arco cedido pelo seu anfitrião e numa sequência de três tiros rápidos, que deixa Regnault sem saber se olha para o arqueiro ou para o alvo, todas as três flechas são colocadas no ar e, uma após a outra, as três acertam o centro do alvo.   -O que?! Isso não é possível! – seus olhos agora fixados no alvo, como se tentasse ver através de alguma ilusão, Regnault fica tão estarrecido que não consegue ver Mortimer chegando por trás dele.   O mestre arqueiro olha a sua volta, ninguém, nem mesmo um serviçal visível. Em um movimento suave, uma adaga surge em sua mão e um giro, os tendões do calcanhar de Regnault são decepados. Ele cai no chão, mas antes de conseguir gritar da dor excruciante, Mortimer o segura pela boca e se coloca acima do homem caído.   -Três flechas certeiras ao centro, como a sua primeira errou... – apesar da tranquilidade em sua voz, Mortimer se esforça para impedir o homem de gritar - Hoje você falou demais. Durante toda uma tarde que deveria ser uma das melhores tardes que um homem pode desejar, você apenas falou. E no final, não disse nada além do quanto não valoriza nada além de si mesmo. Este é meu prémio.   O terror nos olhos de Regnault é assolador.   -Agora irei lhe contar o futuro... shh... calma, você já disse o bastante! Me deixe falar. Agora vai aproveitar para exercitar a audição, afinal sabe o que dizem sobre a vida, nunca se sabe quando será sua última oportunidade – Mortimer sorri pela primeira vez desde que saiu da companhia de Edelin – Hoje à noite nós vamos para uma viagem de negócios, só eu e você. Daqui a pouco eu irei lá dentro de sua casa para informar sua bela família que você ficou tão empolgado com as oportunidades de negócios que eu trouxe, que nem pode esperar e foi direto para cidade. Não se preocupe, eu vou na sequência, não vai ficar sozinho nesta empreitada. Mas para não levantar suspeitas, a noite você voltará para casa e dormirá ao lado da sua adorável esposa, mas diferentemente do que fez hoje, desta vez você dirá apenas coisas boas para ela e, já que elogios estão sendo distribuídos, durante amanhã você fará o mesmo para sua tão amável filha, inclusive se desculpará por ter sido rude com ela, concorda?   Mesmo com dor, Regnault encontra forças para acenar com a cabeça em concordância.   -Muito bem! Está vendo como ouvir os outros é bom? Como prêmio, por ser tão bom ouvinte, irei te poupar o trabalho de fazer isso tudo que eu descrevi, e eu mesmo farei por você e farei tão bem, que será como se fosse você!   A expressão Regnault agora transparece confusão, mas não por muito tempo, pois ele começa a se contorcer novamente em resposta a dor agonizante causada pela adaga atravessando vagarosamente entre suas costelas. O sofrimento o leva a se debater violentamente e, sendo um homem corpulento, pelo menos em comparação a Mortimer, ele por um momento consegue derrubar seu ofensor de cima dele. Entretanto, o que falta de força a Mortimer é compensado muito além por sua agilidade e ele recupera o controle sobre sua vítima. Neste movimento, ele não percebe, mas seu amuleto de Nox pula para fora de suas vestes negras.   Com os olhos arregalados, Regnault apenas consegue gritar uma última palavra – Nox!


Cover image: by Henrique Albert